POV #16
Não há quem duvide de que existe uma estranha beleza naquilo que é imperfeito. O que carrega marcas, rastros e sinais de uso dispõe de uma verdade que a assepsia estética não consegue transmitir. Na podolatria, essa percepção atinge um grau quase sublime: as solas sujas, os calcanhares ligeiramente marcados pelo dia, o vestígio de suor nos sapatos ou meias – tudo compõe uma narrativa silenciosa, profundamente humana, sobre presença, sensualidade e autenticidade.
Nesse contexto, a sujeira é um muito mais um registro impresso no corpo do que uma degradação ou algo que cause repulsa. Pelo contrário, é a biografia cotidiana de um corpo que viveu, percorreu caminhos, sentiu a frieza do chão e o calor do mundo. É o corpo que transitou, tocou, pisou e imprimiu sua passagem e que, devido a isso, revelou a manifestação do erotismo humano naquilo que é simbolicamente divergente.
Os pés marcados pelo mundo são como histórias ocultas, secretas, do dia-a-dia feminino. O que seria banal, corriqueiro e mesmo repulsivo para alguns, é uma revelação estética para muitos fetichistas.
O realismo erótico e a verdade dos corpos
Na psicanálise e na estética contemporânea, há uma valorização daquilo que rompe o véu do ideal e revela a verdade do desejo. O gesto mínimo, o detalhe visual, o instante fugaz podem conter toda a intensidade do amor e do desejo. A sujeira nos pés pode ser lida como metáfora dessa ruptura simbólica: um convite à contemplação do humano, despido do verniz publicitário do corpo ideal.
O podólatra que se fascina por solas sujas não busca a sujeira em si, mas a verdade que ela carrega. O que o atrai é a materialidade do corpo vivido, a autenticidade de algo que não se apresenta fabricado, mas algo íntimo e natural que floresceu na mulher apreciada. Aquilo que “não pode”, mas que está lá, em alto contraste com a delicadeza da feminilidade. Há nesse olhar uma dimensão estética semelhante à do realismo nas artes: o desejo pelo que é cru, autêntico, imperfeito e, portanto, verdadeiro.
Erotismo e transgressão simbólica
O erotismo, como lembrava Georges Bataille, é sempre uma forma de transgressão. Desejar o que é considerado impuro é desafiar uma norma cultural que separa o limpo do sujo, o puro do carnal. Nesse sentido, as solas marcadas são mais do que um fetiche: são uma afronta delicada à moral do asseio, um lembrete de que o prazer nasce no contato com o real, com o terreno, com o humano.
Aqui, a transgressão não é vulgar, mas o reconhecimento de que a sensualidade também pode habitar o pó do caminho, o vestígio de um salto que atravessou o asfalto, o suor que impregnou a palmilha. A sujeira, que culturalmente remete ao profano, torna-se metáfora do vivido, isto é, o erotismo como celebração da existência em sua forma mais pura.
O feminino vivido e o olhar do desejo
Para algumas mulheres, é algo revelador quando desfrutam da percepção de que seus pés despertam desejo (e não apenas o rosto, o corpo ou o vestir). É como se partes muitas vezes ignoradas ganhassem protagonismo. Quando esse olhar se volta para o que é natural, como para as solas marcadas, as meias usadas e o vestígio do dia, ela percebe que há também muita beleza e poder no que é autêntico.
Esse reconhecimento não é subserviência ao olhar masculino, mas partilha. É a consciência de que o corpo vivido comunica. E que há força e erotismo em se saber admirada não apenas pelo que se exibe ou se projeta, mas também pelo que se revela sem querer. O corpo real, quando olhado com reverência, se torna mais que corpo: torna-se linguagem.
O rastro como arte
A estética da sujeira, na podolatria, é uma poética do real. Ela devolve à sensualidade o que a publicidade tirou: o cheiro, o toque, o vestígio, a presença. Cada marca na sola é como um fragmento de tempo, um mapa sensorial que conecta o desejo à experiência.
Ao admirar um pé feminino com suas marcas do dia, o Pés sujos e a narrativa do
realismo erótico não está celebrando a sujeira, mas o vivido, o humano. Está reconhecendo que o desejo não nasce da perfeição, mas da verdade. Porque o erotismo mais profundo não está no corpo ideal, mas naquele que, de algum modo, nos faz lembrar que estamos vivos.
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